Richard Simonetti ·
Famoso artista assumiu o compromisso de pintar um quadro a óleo para a catedral de uma cidade italiana. Durante meses dedicou-se ao gratificante trabalho. Ao final, faltavam as faces de duas figuras: Jesus menino e Judas Iscariotes. Em bairro de periferia encontrou um garoto de sete anos, cujo rosto o impressionou vivamente. Tinha expressão suave, fisionomia tranquila, olhos brilhantes e expressivos, exatamente o que desejava. O pintor suspirou, aliviado. Faltava apenas Judas.
O tempo passou, o quadro empacou; anos se sucederam, sem que o modelo ideal fosse encontrado. O artista viu homens que traziam estampada na face a vilania e a degradação. Mas nenhum deles possuía uma fisionomia que configurasse Judas como o imaginava: deprimente figura, um infeliz vencido pela ambição, atormentado pela vil traição.
Certa feita bebericava um copo de vinho numa taverna, quando um mendigo, esfarrapado e magro, apareceu à porta. Cambaleante, caiu e rolou pelo chão. Voz rouquenha clamava: – Vinho, vinho!
Aquela fisionomia atormentada, viciosa, suja, desesperada, era o retrato fiel de Judas! Emocionado, propôs-lhe: – Venha comigo! Eu o ajudarei!
Depois de ter satisfeito a fome e a sede do improvisado modelo, o pintor desvelou a tela, dispondo-se a iniciar o trabalho. Entretanto, quando o mendigo a contemplou, deixou-se possuir por grande agitação, desandando em choro convulso.
– O que houve? Por que essa aflição? – perguntou o artista.
A gaguejar, o infeliz fez surpreendente revelação:
– Não se lembra de mim? Há muitos anos estive aqui. Fui eu! Fui eu quem posou para o seu menino Jesus!
Este fascinante episódio dramatiza uma situação que se repete, indefinidamente, no Mundo: A perda da inocência e da pureza, e o comprometimento com vícios e paixões, marcando a transição da infância para a idade adulta.
Jean-Jacques Rousseau proclamava que o homem é bom ao nascer. Nasce com a face de Jesus. A sociedade lhe imprime o rosto de Judas. Forçoso considerar, entretanto, o que se assim fosse, estaríamos diante de um fatalismo inconcebível, uma incoerência de Deus. Colocar-nos num mundo onde fôssemos inexoravelmente induzidos ao mal.
Sócrates, que viveu há mais de dois mil anos antes de Rousseau, tinha um conceito melhor. Admitindo a reencarnação, considerava que a criança não é um livro em branco. Guarda registros de vidas anteriores. Educar seria não apenas fazer o Espírito entrar na posse de seu patrimônio de experiências pretéritas, mas também ajudá-lo a superar as tendências inferiores resultantes de seus desvios.
É exatamente esse o ponto de vista da Doutrina Espírita, a nos ensinar que a candura da criança, sua inocência e simplicidade, nada tem em comum com a natureza do Espírito que ali está. Objetivam despertar naqueles que a cercam, sentimentos de proteção e carinho, fundamentais para que sobreviva, já que nessa fase o ser humano é totalmente dependente.
A partir da adolescência, o Espírito reencontra a si mesmo, com suas qualidades e defeitos. A maldade, o vício, a inconsequência, refletirão apenas aquilo que ele é, realmente, fruto de suas experiências passadas. Por isso é que a face de Jesus pode converter-se na face de Judas. A pureza aparente pode ocultar o comprometimento com paixões e vícios.
Mas também o contrário pode acontecer. Ensina a Doutrina Espírita, questão 383, de O Livro dos Espíritos, que a infância tem por objetivo ajudar o Espírito reencarnante a superar suas tendências inferiores, porquanto nessa fase ele é extremamente sensível às influências que recebe dos adultos. Uma educação segura, inspirada em disciplina e amor, operam prodígios de renovação nos filhos.
Em linhas gerais, consideremos que a face de Jesus menino tem se convertido, em nós, nas experiências reencarnatórias, na face lamentável de Judas. Somos convocados, agora, pelo conhecimento espírita, a transformar a face de Judas na figura radiante do Cristo, empenhando-nos com tal ardor e dedicação, que um dia possamos repetir com o Apóstolo Paulo (Gálatas, 2:20): ...e já não sou eu quem vive, mas o Cristo que vive em mim.
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