domingo, 28 de outubro de 2012

Últimos traços

Sérgio Ribeiro·
Faz precisamente cinqüenta e dois anos (1943) que habito o mundo astral. Tendo-o atingido através da violência de um suicídio, que ainda hoje não logrei alcançar a felicidade, bem como a paz íntima que é o beneplácito imortal dos justos e obedientes à Lei. Durante tão longo tempo tenho voluntariamente adiado o sagrado dever de renascer no plano físico-material envolvido na armadura de novo corpo, o que já agora me vem amargurando sobremodo os dias, não obstante tê-lo feito desejoso de sorver ainda, junto dos nobres instrutores, o elemento educativo capaz de, uma vez mergulhado na carne, proteger-me bastante, o suficiente para me tornar vitorioso nas grandes lutas que enfrentarei rumo à reabilitação moral-espiritual.
Muito aprendi durante este meio século em que permaneci internado nesta Colônia Correcional (Legião dos Servos de Maria) que me abrigou nos dias em que eram mais ardentes as lágrimas que minhalma chorava, mais dolorosos os estiletes que me feriram o coração vacilante, mais atrozes e desanimadoras as decepções que surpreenderam o meu Espírito, muitos muros a dentro do túmulo cavado pelo ato insano do suicídio! Mas, algo aprendi do que ignorava e me era necessário para a reabilitação, também muito sofri e chorei, debruçado sobre a perspectiva das responsabilidades dos atos por mim praticados! Mesmo desfrutando o convívio confortativo de tantos amigos devotados, tantos mentores zelosos do progresso de seus pupilos, derramei pranto pugentíssimo, enquanto, muitas vezes, o desânimo, essa hidra avassaladora e maldita tentava deter-me os passos nas vias do programa que tracei.
Aprendi, porém, a respeitar a idéia de Deus, o que já era uma força vigorosa a me escudar, auxiliando-me no combate a mim mesmo. Aprendi a orar, confabulando com o Mestre Amado nas asas luminosas e consoladoras da prece lídima e proveitosa! Muito trabalhei, esforçando-me diariamente, durante quarenta anos, ao contacto de lições sublimes de mestres virtuosos e sábios, a fim de que, das profundezas ignotas do meu ser, a imagem linda da Humildade surgisse para combater a figura perniciosa e malfazeja do Orgulho que durante tantos séculos me vem conservando entre as urzes do mal, soçobrado nos baixios da animalidade! Ao influxo caridoso dos legionários de Maria também comecei a soletrar as primeiras letras do divino alfabeto do Amor, e com eles colaborei nos serviços de auxílio e assistência ao próximo, desenvolvendo-me em labores de dedicação àqueles que sofrem, como jamais me julgara capaz! Lutei pelo bem, guiado por essas nobres entidades, estendi atividades tanto nos parques de trabalhos espirituais acessíveis à minha humílima capacidade como levando-as ao plano material, onde me foi permitido contribuir para que em vários corações maternos a tranqüilidade voltasse a luzir, em muitos rostinhos infantil, lindos e graciosos, o sorriso despontasse novamente, depois de dias e noites de insofrida expectativa, durante os quais a febre ou a tosse e a bronquite os haviam esmaecido, e até no coração dos moços, desesperançados ante a realidade adversa, pude colocar a lâmpada bendita da Esperança que hoje norteia meus passos, desviando-os da rota perigosa e traiçoeira do desânimo, que os teria impelido a abismos idênticos aos por mim conhecidos! Durante quarenta anos trabalhei, pois, denodadamente, ao lado de meus bem-amados Guardiães! Não servi tão só ao bem, experimentando atitudes fraternas, mas também ao Belo, aprendendo com insignes artistas e “virtuoses” a homenagear a Verdade e a respeitar a Lei, dando à Arte o que de melhor e mais digno foi possível extrair das profundezas sinceras de minhalma.
Não obstante, jamais me senti satisfeito e tranqüilo comigo mesmo! Existe um vácuo em meu ser que não será preenchido senão depois da renovação em corpo carnal, depois de plenamente testemunhado a mim mesmo o dever que não foi perfeitamente cumprido na última romagem terrena, abreviada pelo suicídio! A recordação dolorosa daquele Jacinto de Ornelas y Ruiz, por mim desgraçado com a cegueira irremediável, num gesto de despeito e ciúme, permanece indelével, impondo-se às cordas sensíveis do meu ser como estigma trágico do Remorso inconsolável, requisitando de meu destino futuro penalidades idêntica, ou seja – a cegueira, já que a prova máxima de ser cego fora por mim, anulada à frente do primeiro ensejo ofertado pela Providência, mediante o suicídio com que julgara poder libertar-me dela, ficando, portanto, com esse débito na consciência !
De há muito devera eu Ter voltado à reencarnação. O que fora lícito aprender nas Academias da Cidade Esperança foi-me facultado generosamente, pela magnânima diretora da Colônia (Maria de Nazaré), a qual não interpôs dificuldades ao longo do aprendizado que desejei fazer. Até mesmo avantajados elementos da medicina psíquica adquiri ao contacto dos mestres, durante aulas de Ciência e no desempenho de tarefas junto às enfermarias do Hospital Maria de Nazaré, onde sirvo há doze anos, substituindo Joel, que partiu para novas experiências terrenas, no testemunho que à Lei devia, como suicida que também era. Tal aptidão valer-me-á o poder tornar-me “médium curador “, mais tarde, quando novamente habitar a crosta do planeta onde tantas e tão graves expressões de sofrimento existem para flagelar a Humanidade culposa de erros constantes.
O sentimento do dever leva-me a pensar seriamente na necessidade de volver aos páramos terrestres para testemunhar o desejo de me afinar definitivamente com a Ciência da Verdade que acabo de entrever durante meu estágio nesta Colônia. Não mais deverei permanecer em Cidade Esperança, a menos que pretenda agravar minhas responsabilidades com um estado de estacionamento incompatível com os códigos que acabo de estudar e aceitar. Incorreria em grave falta dilatando por mais tempo a reparação que a mim mesmo devo, bem com à Lei do Sempiterno, por mim espezinhada desde muitos séculos. 

Camilo Castelo Branco

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