terça-feira, 16 de setembro de 2014

Unidos pelo Coração

Como é que as dores inconsoláveis dos que sobrevivem se refletem nos Espíritos que as causam?
O Espírito é sensível à lembrança e às saudades dos que lhe eram caros na Terra; mas, uma dor incessante e desarrazoada o toca penosamente, porque, nessa dor excessiva, ele vê falta de fé no futuro e de confiança em Deus e, por conseguinte, um obstáculo ao adiantamento dos que choram e talvez à sua reunião com estes.
Livro dos Espíritos, questão 936.


O homem se despe e entra no chuveiro.
Súbito a porta do banheiro é arrombada. Desconhecidos o agarram, vendam seus olhos e o amordaçam. Conduzido ao aeroporto, é embarcado num avião, em indesejável viagem para remota região, onde o deixam sem nenhuma explicação. Confuso e desorientado vagueia sem rumo.
Semelhante situação se assemelha a de Espíritos que retornam à Vida Espiritual abruptamente, “rapta¬dos” por um acidente, um ato de violência, uma síncope fulminante.
A extensão de suas perplexidades dependerá, evidentemente, de vários fatores, destacando-se os conhecimentos relacionados com o trânsito para o Além, a maturidade emocional e, sobretudo, a natureza de seu envolvimento com os interesses materiais. Neste particular, aplica-se perfeitamente a advertência de Jesus: “Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu co¬ração” (Mateus 6, 21).
Aqueles que fazem da existência humana um fim em si, que de nada cogitam além dos seus negócios, apegados aos bens da Terra, terão imensas dificuldades de adaptação, se “raptados” para o continente espiritual. Um rico empresário, empolgado por suas atividades comerciais, sem espaço em seu coração para cogitações mais nobres, sentir-se-á dolorosamente lesado, como se lhe houvessem roubado até o último centavo.

Espíritos evoluídos, que fazem “poupança para o Além”, guardando seus tesouros nos bancos da sabedoria e da virtude, não têm dificuldade para enfrentar a grande transição, mesmo que ocorra inesperadamente.
Herculano Pires, notável escritor e jornalista espírita, é um exemplo marcante. Tendo sofrido um enfarte, foi imediatamente conduzido ao hospital. Enquanto os médicos o socorriam, iniciava-se uma reunião de estudos espíritas e prática mediúnica, na garagem de sua residência, que funcionava como pequeno centro espírita, frequentado por amigos e admiradores. A família resolve por bem não informar o grupo reunido, a fim de evitar tumulto no hospital.
No desdobramento dos trabalhos mediúnicos, para surpresa dos presentes, um Espírito informou o faleci¬mento de Herculano. Em seguida ele próprio se manifesta¬va para suas despedidas, em mensagem psicografada, em que dizia:

Família querida,
Vivendo contigo dias felizes e amenos, na
[experiência do lar prossegue a vida.
Coragem e otimismo, não quero pompas nem velas,
Apenas a simplicidade do professor do interior
[em metrópole de céus e estrelas...
Sustenta em apoio vibratório a casa,
Ampara o livro da codificação,
E eu, em espírito ou memória, ao lado dos
[amigos espirituais contigo sempre estarei,
No apostolado de pregar e servir a Doutrina dos
[Espíritos, com o Mestre de Lion.
Virgínia querida, mais esposa do que esposo fui,
Já não tem falar, nem riso, não mais o poeta.
Mas que semblante triste o teu! Volte ao que era,
Como o tempo na casa velha,
Tudo é vida, das noites de rima, doutrina e cozinha,
Lar, amigos,
Não é confusão, é nova sensação,
A de viver, sentir que já não sou corpo,
Mas alma, até que enfim!
Desculpe, sou espírito de verdade,
Amparado em novas luzes,
A minha, a nossa luzinha, que ajudaste a construir...
No momento adeus, menos choro e mais café!
Se há dificuldade de captar a escrita,
Imagine a de despertar aqui,
Para dizer aos meus da sobrevivência da alma!
Muita paz em Jesus.


Somente depois do encerramento da reunião chegou à notícia do falecimento. Ficou-se sabendo que Herculano costumava escrever poesias dirigidas aos familiares em ocasiões especiais. E assim procedeu novamente, em data muito significativa ─ a de sua própria desencarnação! Identificamo-lo perfeitamente nas ideias e ex¬pressões usadas, particularmente ao solicitar aos familiares que trabalhem em favor da obra de Allan Kardec, o “Mestre de Lion”, como ele o fez, por supremo ideal de sua existência.

A manifestação de Herculano Pires, momentos após o seu falecimento, é um atestado eloquente de imortalidade, uma demonstração de como o Espírito esclarecido e consciente pode superar de imediato o trauma da morte repentina, mas é, inegavelmente, uma ex¬ceção.

Por isso, o melhor mesmo é “morrer na cama”, em doença de longo curso, que nos prepara compulsivamente, induzindo-nos à oração, à superação das ilusões, à procura da religião, ao desapego das humanas paixões, à disposição de cultivar valores espirituais. A transferência, então, efetua-se de forma mais branda. Não nos sen¬timos “raptados”. Podemos até ensaiar despedidas, se formos capazes de “encarar” a morte.

Em mortes “à vista” ou “a prazo”, muita gente parte despreparada; muita gente fica inconformada, originando dois problemas:
No primeiro, o “morto” perturba os “vivos”.
Se o desencarnante encontra dificuldades para definir seu novo estado; se o afligem impressões relaciona¬das com o tipo de morte que sofreu; se ele está confuso e atribulado, há uma tendência natural para procurar aqueles aos quais está ligado pelos laços do coração, que constituem parte de seu “tesouro”.
Aproxima-se deles para pedir socorro, para reclamar atenção, para expor suas angústias e perplexidades.
Estabelecida a sintonia entre o desencarnado e seus afetos, surge o que poderíamos definir como uma obsessão pacífica, já que não há nenhuma intenção maldosa do “obsessor”. Ele apenas quer ajuda, como alguém que, prestes a morrer afogado, agarra-se desesperadamente ao companheiro que está mais próximo.
Semelhante envolvimento impõe penosas impressões àqueles que o sofrem, mas não há grandes dificuldades para ser superado. A simples frequência ao Centro Espírita vale por uma desobsessão, porquanto o desencarnado tende a acompanhá-los, colhendo os benefícios do ambiente e das palestras, que o esclarecem e preparam para a ajuda mais efetiva dos mentores espirituais.

E há o problema dos “vivos” que perturbam os “mortos”.
Particularmente nas mortes repentinas, se os familiares não têm nenhuma noção a respeito do assunto, tendem a cultivar ideias negativas, em insistente questionamento íntimo. E revivem interminavelmente as circunstâncias do desencarne, envolvendo um carro destroçado, um incêndio devorador, um afogamento trágico, um tiro fatal...
Quando o desencarnante tem certa maturidade espiritual, superando o trauma do trágico retorno à Vida Espiritual, consegue neutralizar as vibrações de angústia e desespero dos familiares, embora lhe sejam penosas.
Se, entretanto, como ocorre com frequência, o re¬torno inesperado lhe impõe perplexidades e dúvidas, o desajuste dos familiares recrudesce suas reminiscências dolorosas relacionadas com as circunstâncias de sua morte, como quem vive um pesadelo que se repete indefinidamente.
Ao se manifestarem em reuniões mediúnicas, estes atribulados companheiros imploram aos entes queridos uma trégua em suas amargas cogitações íntimas. Não de¬sejam ser esquecidos, mas que deixe de jorrar a fonte de inconsoláveis e torturantes lembranças. Que não os imaginem queimados, destroçados, afogados, desintegra¬dos, mas vivos, num outro corpo, numa outra dimensão.
Insistindo para que mudem suas disposições e re¬tornem à normalidade, sugerem aos familiares que se disponham a trabalhar em favor dos semelhantes, integrando-se nos serviços da fraternidade humana.

O falecimento de um afeto caro ao nosso coração se assemelha a uma amputação psicológica. É como se arrancassem parte de nós mesmos, ficando um imenso vazio onde, se não tivermos cuidado, proliferam facilmente os miasmas do desajuste e da perturbação.
O esforço do Bem ajuda-nos a preencher adequada¬mente esse vazio, operando prodígios de refazimento em favor de nossa saúde e bem-estar, harmonizando-nos com a existência.
Obras notáveis de caridade e promoção humana têm nascido em situações dessa natureza, quando pessoas atormentadas pelo falecimento de alguém muito querido, dedicam suas vidas à sementeira do Bem, colhendo consolo e alento no empenho de servir.
A saudade sempre fica, mas sem amarguras, sem dores inconsoláveis, uma saudade suave, como a notícia feliz de um afeto que não se extingue jamais, assegurando-lhes, no recôndito da alma, que seus amados estão presentes no seu dia-a-dia, no trabalho edificante que executam, nas lágrimas que enxugam, nas bênçãos que distribuem. Embora habitando mundos paralelos, permanecem unidos pelo coração.

Por Richard Simonetti
Contato: richardsimonetti@gmail.com

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