Na sala grande, nobremente assentada em velha poltrona sobre largo estrado que lhe permitisse mais amplo golpe de vista, fazia um gesto de complacência, à distância, para cada servidor que exclamava de joelhos: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, “sinhá”.
- Louvado seja! – acentuava Dona Maria com terrível severidade a transparecer-lhe da voz.
Velhinhos de cabeça branca, homens rudes do campo, mulheres desfiguradas pelo sofrimento, moços e crianças desfilavam nas boas-vindas.
Contudo, em ângulo recuado, pobre moça mestiça, sustentando nos braços duas crianças recém-nascidas, sob a feroz atenção de capataz desalmado, esperava a sua vez.
Foi a última que se aproximou para a saudação.
A fazendeira soberana levantou-se, empertigada, chamou para junto de si o Cérbero humano que seguia de perto a jovem escrava, e, antes que a pobrezinha lhe dirigisse a palavra, falou-lhe, duramente: - Matilde, guarde as crias na senzala e encontre-me no terreiro.Precisamos conversar.
A interpelada obedeceu sem hesitação.
E afastando-se do recinto, na direção do quintal, Dona Maria Augusta e o assessor de azorrague em punho cochichavam entre si.
No grande pátio que a noite agora amortalhava em sombra espessa, a mãezinha infortunada veio atender à ordenação recebida.
- Acompanhe-nos! - determinou Dona Maria, austeramente.
Guiadas pelo rude capitão do mato, as duas mulheres abordaram a margem do rio transbordante.
Nuvens formidandas coavam no céu os medonhos rugidos de trovões remotos...
Derramava-se o Paraíba, em soberbo espetáculo de grandeza, dominando o vale extenso.
Dona Maria pousou o olhar coruscante na mestiça humilhada e falou: - Diga de quem são essas duas “crias” nascidas em minha ausência! - De “Nhô” Zico “sinhá”! - Miserável! – bradou a proprietária poderosa – meu filho não me daria semelhante desgosto.Negue essa infâmia! - Não posso! Não posso! A patroa encolerizada relanceou o olhar pela paisagem deserta e bramiu, rouquenha: - Nunca mais verá você essas crianças que odeio...
- Ah! “Sinhá” – soluçou a infeliz -, não me separe dos meninos! Não me separe dos meninos! Pelo amor de Deus!...
- Não quero você mais aqui e essas crias serão entregues à venda.
- Não me expulse, “sinhá”! Não me expulse! - Desavergonhada, de hoje em diante você é livre! E depois de expressivo gesto para o companheiro, acentuou, irônica: - Livre, poderá você trabalhar noutra parte para comprar esses rebentos malditos.
Matilde sorriu, em meio do pranto copioso, e exclamou: - Ajude-me, “sinhá”...Se é assim, darei meu sangue para reaver meus filhinhos...
Dona Maria Augusta indicou-lhe o Paraíba enorme e sentenciou: - Você está livre, mas fuja de minha presença.Atravesse o rio e desapareça! - “Sinhá”, assim não! Tenha piedade de sua cativa! Ai, Jesus! Não posso morrer...
Mas, a um sinal da patroa, o capataz envilecido estalou o chicote no dorso da jovem, que oscilou, indefesa, caindo na corrente profunda.
- Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me, Nosso Senhor! – gritou a mísera, debatendo-se nas águas.
Todavia, daí a instantes, apenas um cadáver de mulher descia rio a baixo, ante o silêncio da noite...
Cem anos se passaram...
Na antevéspera do Natal de 1956, Dona Maria Augusta Correia da Silva, reencarnada estava na cidade de Passa-Quatro, no sul de Minas Gerais.
Mostrava-se noutro corpo de carne, como quem mudara de vestimenta, mas era ela mesma, com a diferença de que, ao invés de rica latifundiária, era agora apagada mulher, em rigorosa luta para ajudar o marido na defesa do pão.
Sofria no lar as privações dos escravos de outro tempo.
Era mãe, padecendo aflições e sonhos...Meditava nos filhinhos, ante a expectação do Natal, quando a chuva, sobre o telhado, se fez mais intensa.
Horrível temporal desabava na região.
Alagara-se tudo em derredor da casa singela.
A pobre senhora, vendo a água invadir-lhe o reduto doméstico, avançou para fora, seguida do esposo e das crianças...
As águas, porém, subiam sempre em turbilhão envolvente e destruidor, arrastando o que se lhes opusesse à passagem.
Diante da ex-fazendeira erguia-se um rio inesperado e imenso e, em dado instante, esmagada de dor, ante a violenta separação do companheiro e dos pequeninos, tombou na caudal, gritando em desespero: - Socorro! Socorro, meu Deus! Valei-me Nosso Senhor! Todavia, decorridos alguns momento, apenas um cadáver de mulher descia corrente a baixo, ante o silêncio da noite...
A antiga sitiante do Vale do Paraíba resgatou o débito que contraíra perante a Lei.
Francisco Cândido Xavier
Nenhum comentário:
Postar um comentário