sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O DESERTOR


Sérgio Ribeiro 
Procurei através desta contar minha triste história, uma vez que minha deserção tenha ocasionado o desencarne de minha mãe.
Tudo se iniciou em um tempo que longe vai, aproximadamente um século e meio. E aqueles a quem eu estaria vinculado pelo compromisso reencarnatório, eram os mesmos que, há mais de dez décadas, viviam comigo no mesmo ambiente familiar, como primos-irmãos.
Nessa época, nossa existência ficara quase que nula no sentido espiritual, porque a mesma fora utilizada à maneira de sócios na péssima conduta, na qual nos identificávamos. À vista disso, o nosso desencarne fora muito triste, porque acabamos sendo vítimas de nossas próprias ações, isto é, quando preparávamos para assassinar uma criatura, com a qual não simpatizávamos, nos instantes dos preparativos da armadilha acabamos por sofrer a perda de nossas preciosas vidas. A pólvora, destinada ao desmoronamento explodiu, soterrando-nos, provocando, assim, nosso desencarne.
De retorno à pátria espiritual, nossa condição era de muito sofrimento, uma década e meia ficamos retidos nas trevas, até que nos seria dada uma nova oportunidade.
O reencarnar era a porta para tão triste situação. Tudo estava preparado, meus primos irmãos do passado, agora, seriam meus pais e, juntos, ressarciríamos os escabrosos débitos do passado.
Eles reencarnaram primeiro. Os anos se passaram e um dia, como que por acaso, mas consciente de que o acaso não existe, acabaram por se encontrar e se enamorar - um na experiência masculina, e o outro na experiência feminina.
Chegou, então, o grande dia do tão sonhado casamento, e próxima estaria à hora de meu reencarne. No momento em que se conheceram no amor, a concepção se fez ligando-me àqueles que seriam meus pais.
Passaram-se os dias e quando contava eu com o número de três meses de vida intrauterino, minha mãe informava àquele que seria meu genitor, que estava grávida.
Qual não foi sua reação e aos gritos de revolta dizia: - Por que não me avisou antes, mulher?
Não te lembras de que nos casamos há pouco tempo e ainda nada temos para oferecer a essa criança? Procuremos primeiro a compra de um terreno e, depois, o receberemos com garantia para seu futuro. Portanto, sem comentários, aborte.
Foi assim que se deu minha primeira expulsão.
Sofri. Foi muito doloroso para mim, mas pelo que tudo indicava, eles assim agiram, porque era para meu próprio bem-estar no futuro. Dessa forma procurei me conformar, aguardando nova oportunidade que se daria depois da compra do terreno.
Alguns anos se passaram. Chegou o dia da compra do tão almejado terreno. Agora, mais do que nunca, minhas esperanças cresceram. Despedi-me dos Espíritos amigos, que também se encontravam na erraticidade, aguardando o momento oportuno para reencarnarem.
Aproximei-me daquela que seria minha mãe e fiz com que a mesma esquecesse o anticoncepcional de uso habitual. Assim, novamente ela se engravidara. Eu, ali, mais esperançoso via-me desenvolver, célula por célula, de embrião ao feto.
Minha futura genitora parecia ocultar o estado. Quem sabe para fazer surpresa
Os dias foram passando, eu, tomando formas mais perfeitas, já começava divisar as unhas despontando em meus dedinhos. Foi no terceiro mês, que comecei a tocar em seu ventre, para conscientizá-la de minha presença.
Chegada a hora de a notícia ser dada àquele que se responsabilizaria pela minha educação como pai, aguardei ansioso para ver a festa que ele iria fazer, porque o tão almejado terreno fora adquirido pela sua economia e sacrifício.
A notícia lhe chegara aos ouvidos, mas... Oh! Que decepção! Ao invés de me receber com alegria conforme o prometido anterior alegou que a hora não era propícia para a vinda do bebê, e que o necessário era fazer primeiro a construção de uma casa no lote adquirido, porque, assim, o bebê teria mais segurança no futuro.
Novamente a expulsão pelo aborto, já em número de duas.
As dores eram insuportáveis. Sentia-me enlouquecer. Mas mesmo assim, ainda imaginava que eles estavam fazendo isso para meu próprio bem.
E pacientemente, aguardei a próxima oportunidade que se daria posterior à construção da casa.
Muitos anos se fez de minha última expulsão. Um dia, o sonho se realizou. A casa foi construída.
Novamente me despedi dos meus amigos espirituais na erraticidade, porque desta vez era certeza que se daria meu reencarne. Tudo fiz para que aquela que seria minha genitora esquecesse mais uma vez do uso costumeiro do anticoncepcional.
Assim estava eu, outra vez, ligado a ela pelo compromisso reencarnatório, na presença da célula fecunda.
Tudo indicava estar bem. O número de meses de minha vida intrauterino já caminhava para o quarto mês. Minha mãe, até o momento, nada havia dito ao meu futuro pai.
No quarto mês de gestação não permitia mais esconder-me.
A descoberta fora feita. Quem sabe agora seria recebido com festas, mas que ilusão alimentei! Ele, com brutalidade e usando palavras de baixo calão, feria a esposa por ter-me ocultado.
Mais uma vez alegou dizendo:
- Mulher, não vê que mal acabamos de construir nossa casa, não acha justo que a mobiliemos primeiro e troquemos nosso televisor por um mais moderno? Além do mais, sempre sonhei ter um carro e uma garagem. Não é justo que essa gravidez venha tudo estragar.
Vamos, mulher, aborte.
Aconteceu novamente: fui abortado. Não dava mais para tolerar. Era demais trocar-me por móveis e utensílios, caixas eletrônicas, imagens de tevê e carro, essa não! E o passado como fica? E a promessa feita há mais de um século, quando se realizaria?
Revolta, ódio e vingança. Isso não saía da minha mente.
Esperei pacientemente a vontade do meu futuro pai. Alguns anos se passaram e quando a neve do tempo na presença da velhice começou aparecer nos seus cabelos; quando os utensílios, móveis, sons, televisor e carro, já não preenchiam o vazio de suas vidas, chegara o momento, ele, aquele que seria o pai, intimou sua esposa a se engravidar, fazendo-a cancelar o uso do anticoncepcional.
Agora seria minha vez. Tudo fiz para que se realizasse essa gravidez. Ela se engravidou com a idade bem adiantada. O sonho dos velhos parecia se realizar. Compraram o mais belo e caro enxoval para mim - o seu futuro bebê: carrinho, berço e tudo que pudesse servir quando de meu nascimento. Só agora, o futuro herdeiro seria recebido de braços abertos. No entanto, como era a minha vez, eu desertei.
Fugi da responsabilidade do reencarne (1). O aborto foi por mim praticado, minha ausência junto ao feto acabou por provocar uma infecção interna naquela que seria minha mãe, e que por três vezes houvera me expulsado pelo abortivo, levando-a as entranhas da sepultura.
(1) Pergunta nº 345 d'O Livro dos Espíritos:

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